*Por Tanize Tomasi
As quase oito décadas de vida me deixaram fatigada e hoje foi um daqueles dias em que não consegui ir até o quarto para deitar-me na cama. Adormeci na velha poltrona esburacada na sala. No cômodo uma TV, alguns retratos de família, um velho e empoeirado tapete. Antes mesmo de abrir as pálpebras ao acordar, um cheiro floral adentrou pela fresta da janela. Uma última cheirada adocicada e meus olhos abriram, andaram por todos os cantos e se perderam por entre os galhos espinhosos. Vi eles ali no canto, enquanto mexia no pequeno brinde de calendário.
Me senti aquela criança que rabiscava os dias e aborrecidamente percebia que ainda faltavam muitos e não tinha o porque ficar de vigília. Nos dias que seguiram, olhei diversas vezes lá fora, já não tinha facilidade para descer a escadaria e ficar no gramado. Dali de cima conseguia ver o telhado de algumas casas da vizinhança, as pontas dos jacarandás que cercavam o estradão e o sol no poente caindo mais a oeste. A tardinha vagueou um som das árvores cantarolando a noite e a cada dia que passou ele estava mais estridente e então cantou no meu arvoredo.
Era uma manhã ensolarada quando começaram os preparativos. Todos estavam à procura do broto perfeito de araucária. Só tinha uma árvore dessas por ali, no potreiro do senhor de barbas longas e barrigudo, bem perto dos erveiros.
O tronco era ruspego e escorregadio, ninguém conseguia subir, mas há uns metros um lindo e imponente broto despontava. Pularam uma, duas, três vezes sem conseguir tocá-lo. De repente estavam de novo na velha Monark, um no banco e outro no varão, sumiram pela estrada de cascalho e num estalar apontaram no canto do terreiro de casa. Rodearam e amarraram uma soga no guidão, deram meia volta e estavam no potreiro. Laçaram o galho com a corda e se dependuraram até o galho ceder próximo ao chão. Fez um corte certeiro com o facão e o galho despencou.
Felizes, saíram arrastando o galho amarrado à bicicleta. Foram para casa. Um dia cansativo, mas o broto agora estava lá verdejante na lata de areia no canto da sala. Os olhos pequenos se enchiam de vigor e encantos.
Me peguei procurando as luzes lá fora, algo que pudesse ascender a escuridão, no corre-corre à luminescência, cruzavam-se por todas as direções e em poucos segundos as pequenas mãos iluminavam a noite como faróis e ao amanhecer as pequenas luzes iam se apagando dentro dos vidros vazios de café nas mesinhas de cabeceira do quarto das crianças.
Mais um dia amanhece, há barulhos na rua, crianças andam agitadas, balanços rangem e debaixo do frescor da nogueira saem em direção ao estradão, atravessam uma roça e chegam ao alto das terras da campina. O vento balança e lança as sementes de pinus ao chão. As crianças correm pela roça, se agacham, juntam e colocam várias sementes na camiseta. Voltam segurando as pontas da vestimenta na mão e correndo em disparada pelos murunduns.
Também correm pelo quintal revirando caules, desde o tronco liso e escorregadio da goiabeira até os finos galhos da copa arqueada do limoeiro, onde há algumas manchas esbranquiçadas. No parreiral, apenas lascas soltas dos caules antigos e retorcidos. Por fim, no alto da centenária nogueira, seus longos e corpulentos galhos, relvados carregam uma minúscula e imponente floresta. Levei um punhado comigo e ele virou um belo tapete felpudo que encobriu o caminho de areia e o pequeno lago de papel alumínio. Ali os animais e os três reis acharam o caminho.
O menino e os pais ficaram dentro da caixa vazia de bombons. O anjo e a estrela foram amarrados lá no alto reluzindo sobre o marrom das pinhas dependuradas. Mal tinha amanhecido e nossa mãe entrou pelo quarto e nos deu logo cedo uma boa caixa de sapatos. Entusiasmados, cada um de nós colocou sua caixa embaixo da cama. As noites se tornaram intermináveis, por fim adormecemos em meio a magia da espera. Todas as manhãs acordamos e conferimos dentro das caixas de sapatos, ainda vazias.
Finalmente, numa linda manhã, as caixas amanheceram cheias de doces. O café de bule estava nos esperando na área com aquelas deliciosas bolachas pintadas e enfeitadas com granulado e açúcar colorido.
As pessoas passavam e se cumprimentavam. Os meninos corriam para acenar de volta. Bisbilhoteiros apareciam nas cozinhas enquanto a nona decorava o rocambole de framboesa. As crianças invadiam os quartos à procura de mais guloseimas.
Papai Noel não foi visto, mas nos vestimos para o Natal.
*TANIZE TOMASI é professora, genealogista e escritora. Nasceu em 1º de setembro de 1987, em Tucunduva, fronteira noroeste do Rio Grande do Sul. É Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Paraná. Da sua produção acadêmica, ressaltam-se as obras “Geograficidades quilombolas”, “Saberes-fazeres das comunidades tradicionais do Paraná”, “Etnoconhecimentos, Saberes e Práticas das Comunidades Tradicionais”, “Genealogia das Comunidades Quilombolas do Paraná” e “Relatório Antropológico do Quilombo São João”. Destacam-se em sua produção literária as obras poéticas “Duas casas para decorar”, “Vivas Poesias” e “(A)proximidades: pontes poéticas do norte ao sul”; o romance “Abotoaduras de Balbina” e o conto infantil “Livro das origens”. Atualmente exerce a função de editora chefe na Editora Panaro, cuja missão é a produção de obras didáticas, acadêmicas, científicas e literárias. É membro fundadora da Cadeira nº 3 e Vice-Presidente da Academia de Letras do Noroeste do Rio Grande do Sul.