Um dos mais celebrados jornalistas do Rio Grande do Sul, que soube combinar em crônicas antológicas e na vida cotidiana a paixão pelo futebol e pela cultura, pelos amigos e pela boa polêmica sem jamais deixar de lado o bom-humor, David Coimbra morreu na manhã desta sexta-feira (27), na Capital, após quase uma década de batalha contra o câncer.
Nascido em Porto Alegre, com 60 anos recém-completados, o jornalista do Grupo RBS começou a enfrentar problemas de saúde em 2013 ao ser diagnosticado com um tumor em estágio avançado no rim esquerdo. Após sentir dores no peito, descobriu ainda que a doença já havia se espalhado silenciosamente por meio de metástases ósseas para outras três partes do corpo.
Depois de uma cirurgia para extirpar o órgão e de tentar tratamentos que não surtiram o efeito desejado no Brasil, rumou para os Estados Unidos com o objetivo de dar sequência à luta contra a doença.
Em seu exílio temporário, desde Boston, seguiu escrevendo textos para o jornal Zero Hora e GZH e participando de programas na Rádio Gaúcha, como o então recém-lançado Timeline, sem jamais abandonar o estilo ao mesmo tempo leve e contundente.
Boston
Nos EUA, David conseguiu tomar parte em um estudo clínico inovador que testava a aplicação de imunoterapia – o paciente recebe uma droga que ativa o sistema imunológico com o objetivo de combater o câncer. A resposta de seu organismo foi considerada excelente, o que ajudou a compor as 208 páginas do livro Hoje Eu Venci o Câncer, publicado pela L&PM em 2018.
David decidiu escrever uma obra em tom confessional logo depois de receber a notícia do médico, ainda no Brasil, de que poderia ter poucos meses de vida. Naquele exato momento, resolveu colocar no papel todo seu sofrimento, mas principalmente sua esperança, para que o filho Bernardo – outro de seus grandes amores, hoje com 14 anos, além da mulher, Márcia – pudesse conhecer em detalhes a alma do pai que até os 50 anos se considerava uma “fortaleza física”, e que, depois do diagnóstico, como relatou nas páginas do livro, passou a considerar que a felicidade é “um dia bem vivido, sem dores físicas importantes, em que você agiu com correção e que termina em paz”.
Um de seus traços mais marcantes era justamente a paixão pela escrita, fosse a sua, moldada com frases tão elegantes quanto espirituosas, ou aquela produzida por outros autores que abarcavam desde os antigos gregos aos modernos clássicos noir de nomes como Raymond Chandler ou Dashiell Hammett.
Dizia que gostava de ler e escrever antes mesmo de aprender a ler e escrever por conta da influência de pessoas próximas como a mãe, Diva, e o avô, Walter, de quem puxou o gosto por contar histórias “de futebol, de guerra e de política”, como lembrava o neto. Graças a essa herança familiar, David deixou vasta contribuição para enriquecer a biblioteca dos amantes da literatura com uma produção prolífica e variada, de coletâneas de crônicas e contos a romances.
Por vezes, como o grande repórter que foi em áreas como geral e política, mergulhou fundo em períodos célebres da história gaúcha a exemplo da morte do então deputado estadual José Antônio Daudt, ocorrida em 1988. Na obra, reconstrói momentos da vida do também ex-deputado estadual Antônio Dexheimer, considerado à época suspeito de ter participado do assassinato.
Outra expressão de seu talento era a crônica esportiva. Além de ter exercido o cargo de editor-executivo na editoria de Esportes em ZH e de ter escrito textos sobre Grêmio e Inter para o jornal, produziu obras fundamentais nessa área como A História dos Gre-Nais. Seu amor pelo jogo de bola se estendia a qualquer lance de pura beleza, virada de último minuto ou fracasso retumbante que pudesse valer uma de suas brilhantes analogias com qualquer aspecto da vida humana.
Um desses aspectos fundamentais, para David, eram as amizades cultivadas preferencialmente ao redor de uma mesa coberta com os chopes cremosos que por tantas vezes referiu em seus textos: “O verdadeiro chope, se bem tirado e bem servido, é a melhor bebida do mundo”, ensinou. Muitos desses amigos festejaram publicamente a chegada de seus 60 anos em 28 de abril.
Sala de Redação
Jornalista esportivo e comentarista do Grupo RBS, Diogo Olivier lamentou a ausência do colega em razão do recente agravamento dos problemas de saúde: “O Sala, a Rádio Gaúcha, as colunas de opinião em GZH, as mesas de chope das confrarias, a vida toda fica muito chata sem a tua presença, irmão”.
Se teve grandes amizades, o temperamento assertivo também lhe rendeu algumas poucas e boas brigas. A mais célebre delas foi com o colega de RBS Paulo Sant’Anna. Em 2013, desentenderam-se ao vivo durante o programa Sala de Redação, na Rádio Gaúcha, e Sant’Anna chegou a brandir uma bengala em sua direção. No ano passado, ao celebrar meio século de história do Sala, David gravou um vídeo em que recordava o episódio de forma bem-humorada.
Vida boa
De volta ao Brasil em 2020, nos últimos meses David vinha sofrendo novamente com problemas de saúde e precisou fazer interrupções em seu trabalho nos veículos do Grupo RBS. Quando pôde retomar seus afazeres, com o talento e a leveza de sempre, transformou a rotina de dor e mal-estar na crônica Quando Quis Morrer, publicada em 16 de maio.
No texto, ao mesmo tempo em que revive os momentos de sofrimento, relembra o carinho dos incontáveis amigos que agora deixa, dos familiares que tanto cuidaram dele ao longo dos últimos minutos de jogo contra a doença, dos médicos que não pouparam esforço para que um dos mais admirados jornalistas já surgidos no Rio Grande do Sul continuasse por mais tempo a dividir com uma multidão de admiradores suas histórias do IAPI, seu amor pelo esporte, pela boa literatura, pelos chopes cremosos madrugada adentro, por tudo isso que chamamos vida.
No mesmo texto, David conta que o carinho recebido fez com que pudesse viver seus últimos dias novamente de bem com ela, a vida, sabendo aproveitar o que cada momento é capaz de oferecer: “Isso fez bem. Estou de pé, enfim. Meio esfarrapado, mas de pé. Vamos em frente de cabeça erguida. Com um leve tremor ao pensar no futuro. Mas o futuro não é coisa para se pensar. O que existe é o presente e, se o presente pode ser sorvido integralmente, a vida passa a ser boa. E ela é. A vida é boa.”
Fonte: GZH